Um novo capítulo sobre a comercialização de ofertas de serviços de telecomunicações
05/06/2023

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Com o Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações – RGC/ANATEL, aprovado pela Resolução n.º 632, de 07 de março de 2014, a Anatel teve como objetivo tornar mais concisas as normas relativas aos direitos e deveres dos consumidores e das prestadoras de diversos serviços de telecomunicações.

Objeto de muita discussão dentro e fora da Agência, alguns de seus dispositivos são colocados à prova, não somente para adequação à evolução natural do mercado e, nesse sentido, vemos diversas consultas públicas sendo realizadas pela ANATEL nos últimos anos, mas também vemos algumas discussões judiciais que visam avaliar a validade formal e material de seus dispositivos frente ao nosso ordenamento jurídico.

Este último é justamente o caso do art. 46 do RGC/ANATEL o qual prevê que “Todas as ofertas, inclusive de caráter promocional, devem estar disponíveis para contratação por todos os interessados, inclusive já Consumidores da Prestadora, sem distinção fundada na data de adesão ou qualquer outra forma de discriminação dentro da área geográfica da oferta”.

De forma a se manterem competitivas no mercado, é comum observarmos uma atividade contínua das prestadoras em desenvolver e estruturar novas ofertas que alcancem os interesses de novos e potenciais clientes. E claro, o art. 46 do RGC/ANATEL surge sempre à tona para que sejam atendidos os critérios legais, sobretudo de não discriminação dos usuários.

No entanto, o art. 46 parece ser não somente um lembrete ao compliance como também ao tratamento não discriminatório quanto às condições de acesso e fruição do serviço – já insculpido no art. 3, III da LGT. Em uma análise mais profunda, no entanto, é possível vislumbrar uma intervenção na atividade econômica das prestadoras em afronta aos princípios de liberdade econômica e da livre iniciativa privada.
O art. 46 do RGC/ANATEL vem sendo discutido judicialmente já há algum tempo, com destaque, em âmbito federal, para as ações ajuizadas pela TELCOMP e pela ABTA em face da ANATEL e, em âmbito estadual, para a Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios em face da Claro S/A.

Em 2016, o art. 46 teve sua aplicação suspensa em sede liminar, que rapidamente foi revogada por sentença de mérito da Justiça Federal do Distrito Federal, após reconhecer que a norma possuía amparo legal e constitucional. Os processos aguardam julgamento das apelações da TELCOMP e da ABTA pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região. 

Em momento mais recente, em 11/04/2023, já em âmbito estadual, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios - TJDFT, por meio do seu Conselho Especial, declarou a inconstitucionalidade formal e material do artigo 46 do Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações – RGC/ANATEL.

O incidente de arguição de inconstitucionalidade discutiu a necessidade da prestadora de serviços de telecomunicações em estender suas novas promoções para todos os consumidores preexistentes, em atenção ao disposto no debatido artigo do RGC.

Intimada para se manifestar no incidente de arguição de inconstitucionalidade, a ANATEL defendeu a constitucionalidade de seu texto, sob alegação de que o art. 46 do RGC/ANATEL encontra amparo na garantia constitucional da defesa do consumidor e na garantia fundamental da igualdade, dispostos no art. 5, caput e XXXII, e art. 170, V, da Constituição Federal.
Ainda, sustentou a Agência Reguladora que “a diretriz de não discriminar usuários esculpida no art. 46 do RGC não tem o intuito de prejudicar a livre concorrência, pois não condiciona como será feita a oferta, apenas determina que a oferta esteja disponível a qualquer usuário seja ele já integrante da base ou não da prestadora".

O Ministério Público do Distrito Federal se manifestou pela constitucionalidade do texto, “tendo em vista que a norma versa essencialmente sobre proteção do consumidor, de forma a coibir práticas abusivas”, sendo “necessária relativização do princípio da livre concorrência e da iniciativa privada frente à vulnerabilidade material dos consumidores na aquisição de produtos e serviços”.

De outro lado, a prestadora se manifestou pela inconstitucionalidade do artigo 46 do RGC, sob o fundamento de que tal dispositivo colide com os princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência, assegurados nos artigos 1º, IV e 170, IV da Constituição Federal, juntando parecer elaborado pela LCA Consultores, o qual destaca que “a obrigação contida no artigo 46 do RGC arrefecerá a concorrência entre as operadoras, em manifesto e evidente prejuízo tanto dos assinantes novos, como dos antigos e daqueles que não são assinantes de nenhuma operadora”, bem como de estudo elaborado pelo Professor da Fundação Getúlio Vargas Dr. Arthur Barrionuevo, “asseverando que a obrigação contida no artigo 46 do RGC é extremamente prejudicial para a concorrência entre as operadoras, causando danos aos consumidores e beneficiando as operadoras novas no mercado”.

Ao analisar a questão, o Conselho Especial do TJDFT entendeu pela inconstitucionalidade formal do artigo 46 do RGC, “pois extrapola os limites do poder regulamentar conferido à Agência Reguladora pela Lei nº 9.472/1997, e inova no ordenamento jurídico civil e no direito das telecomunicações, a respeito matéria reservada à lei em sentido estrito e de competência legislativa privativa da União, nos termos dos arts. 22, I, IV e 175, da Constituição Federal” e pela inconstitucionalidade material “por violação de ato jurídico perfeito, em afronta ao art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal”, na medida em que “a imposição contida na norma editada pela ANATEL exigiria das prestadoras de serviços de telecomunicações a alterações de contratos firmados de forma lícita e de acordo com a livre vontade das partes”.

Especificamente em relação à inconstitucionalidade material, o Conselho Especial do TJDFT entendeu que, “no caso dos autos constata-se a inconstitucionalidade material do art. 46 da Resolução nº 632 da ANATEL, por afronta aos arts. 1º, IV, 5º, XXXVI  e 170, IV, da Constituição Federal, por obrigar as operadoras de serviços de telecomunicações a estender os efeitos de novos planos e promoções para todos os contratos ativos, "...sem distinção fundada na data de adesão ou qualquer outra forma de discriminação dentro da área geográfica da oferta”.

O Conselho Especial do TJDFT também consignou que, “conforme entendimento de repercussão geral firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 6191, é materialmente inconstitucional, por afronta aos arts. 1º, IV e 170, IV, da Constituição Federal, a norma jurídica que impõe às empresas de telecomunicações a alteração compulsória de contratos firmados no mercado de consumo, para tabelamento de preço de acordo com novas ofertas, pois os primados da livre iniciativa e da liberdade econômica impedem a interferência estatal no direito das operadoras realizarem promoções ou instituírem planos mais atrativos a novos clientes”.

A ADI 6191 foi ajuizada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN em face da Lei Estadual n. 15.854/2015 do Estado de São Paulo, para “a obtenção da declaração da inconstitucionalidade integral da Lei nº 15.854, de 03 de julho de 2015, do Estado de São Paulo, principalmente do artigo 1º, parágrafo único, item 5, e do artigo 3º, I, que obrigam as instituições de ensino privado a estenderem o benefício de novas promoções aos alunos preexistentes e fixam critério de cálculo de multa irrazoável e desproporcional à luz da realidade do setor”

A mesma matéria atinente à inconstitucionalidade da Lei Estadual n. 15.854/2015 do Estado de São Paulo também foi objeto da ADI 5399, ajuizada pela Associação Nacional das Operadores Celulares – ACEL, razão pela qual foram julgadas de forma conjunta, tendo o Supremo Tribunal Federal restringido os efeitos da inconstitucionalidade das normas aos serviços pertencentes às Associações, quais sejam, os serviços de telecomunicação móvel e serviços de educação.

Após regular tramitação no Supremo Tribunal Federal, foi declarada a inconstitucionalidade parcial do art. 1º, parágrafo único, incisos I e V da Lei n. 15.854/2015 do Estado de São Paulo, fixando a tese de que “é inconstitucional lei estadual que impõe aos prestadores privados de serviços de ensino e de telefonia celular a obrigação de estender o benefício de novas promoções aos clientes preexistentes”.

Em suas razões de julgamento, o Supremo Tribunal Federal fixou que “é lícito que prestadores de serviços façam promoções e ofereçam descontos com a finalidade de angariar novos clientes, sem que isso signifique conduta desleal ou falha na prestação do serviço a clientes preexistentes”, razão pela qual “os dispositivos impugnados também são inconstitucionais por violação aos princípios da livre iniciativa (art. 170 da CF/1988) e da proporcionalidade”.

A decisão do Conselho Especial do TJDFT é um novo capítulo nas discussões que envolvem o Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações estabelecido pela ANATEL, especialmente ante o seu caráter vinculante ao próprio TJDFT, embora ausente a eficácia erga omnes, uma vez que a decisão foi proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade.

A judicialização da questão está longe de ser superada, tendo em vista a ausência de análise do Supremo Tribunal Federal sobre o art. 46 do RGC e de trânsito em julgado das decisões proferidas no âmbito federal e estadual.

Outrossim, conforme divulgado pela ANATEL em sua agenda regulatória para o biênio 2023/2024, uma das prioridades traçadas pelo órgão é a reavaliação da regulamentação sobre direito dos consumidores de serviços de telecomunicações, estabelecidos pelo RGC, com vistas a analisar os pontos do regulamento que foram observados como problemáticos ao longo de sua implementação.

Nesse sentido, a temática envolvendo a atualização do RGC vem sendo trabalhada pela ANATEL desde 2017, com destaque para o processo 53500.061949/2017-68, tendo sido realizada a última consulta pública sobre as alterações no final de 2020 (CP 77/2020).

Especificamente em relação ao artigo 46 do RGC, a sugestão da ANATEL consolidada pelo Conselheiro Emmanoel em sua Análise de n. 139/2022/EC após as considerações do setor e da sociedade na CP 77/2020, foi no sentido de manter a abrangência das ofertas a todos os consumidores, inclusive àqueles já aderentes à base de clientes das operadoras. Contudo, a Agência, acolhendo as contribuições das prestadoras, ressalvou que “o consumidor que optar por aderir a uma nova oferta deve arcar com o ônus advindo de eventual prazo de permanência não cumprido”.

Interessante ponto sobre o tema é que, em oposição ao que foi discutido perante o TJDFT que culminou com a declaração de inconstitucionalidade do artigo 46 do RGC, a ANATEL ponderou no referido processo administrativo que “a livre iniciativa e a liberdade econômica não são princípios absolutos, tanto que o Estado, por vezes, intervém na atividade econômica para proteger determinado interesse público, em especial dos consumidores. A Constituição Federal garante tanto a livre concorrência quanto a defesa do consumidor, sendo ambos princípios a serem observados na ordem econômica (art. 170, incisos IV e V, Constituição Federal)”

A sugestão da ANATEL consolidada pelo Conselheiro Emmanoel em sua Análise para alteração do RGC ainda não foi analisada pelo Conselho Diretor da ANATEL. Contudo, diante da recente decisão proferida pelo Conselho Especial do TJDFT e em razão das ações pendentes no âmbito da Justiça Federal, cabe à Agência avaliar os impactos dos entendimentos judiciais à nova regulamentação, com vistas a conferir maior harmonia ao ordenamento jurídico brasileiro.

Diante desse contexto, torna-se evidente a necessidade de se buscar um equilíbrio entre interesses da iniciativa privada e dos consumidores visando promover o avanço e a evolução do mercado. E, nesse sentido, parece-nos crucial o estabelecimento de uma nova regulação, que vise garantir um ambiente justo e equilibrado, bem como que tenha o condão de pôr um fim aos constantes embates relativos ao citado artigo 46 do RGC.

Camila Strafacci Tostes
Beatriz Lindoso
Cesar R. Carvalho