PL 2630/20: Qual deve ser o órgão regulador de serviços digitais no Brasil?
05/06/2023

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Há um mês, o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) entregava à Câmara dos Deputados seu Parecer Preliminar em relação ao Projeto de Lei 2630/2020, também conhecido como "PL das Fake News", o qual teve como objetivo principal, em sua origem, estabelecer normas, instrumentos e mecanismos para combater a disseminação de notícias falsas nas plataformas digitais com número relevante de usuários, tais como redes sociais e serviços de mensagens privadas operantes no Brasil, tendo se transformado, depois de mais de três anos de tramitação no Congresso Nacional, em uma verdadeira tentativa de disciplinar os serviços digitais prestados pelas referidas plataformas em âmbito nacional. 

Dentre os principais aspectos do PL (conforme protocolado pelo deputado Orlando Silva em 27 de abril e que ainda não chegou a ser levado à apreciação do Plenário da Câmara) destacam-se a instituição de mecanismos de rastreabilidade de mensagens encaminhadas em serviços de mensagens privadas, a obrigatoriedade de contas verificadas para usuários que possuem grande alcance (como influenciadores e figuras públicas), a implementação de políticas de moderação de conteúdo por parte das empresas de tecnologia reguladas pelo PL, bem como eventual responsabilização e sanções em relação ao descumprimento da lei, além de obrigações e deveres de transparência e de cuidado.

Neste sentido, o projeto tem o potencial de impactar positivamente o ecossistema digital no Brasil, uma vez que propõe alterações significativas na forma como as plataformas de mídia social e serviços de mensagens lidam com o conteúdo ilegal, especialmente os relacionados a crimes contra o Estado Democrático de Direito, atos de terrorismo e preparatórios de terrorismo, crimes de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação, crime de racismo, entre outros. No entanto, ele também tem sido objeto de controvérsia e debate, com preocupações levantadas sobre questões como a liberdade de expressão, privacidade e proteção de dados pessoais dos usuários.

Em relação ao aspecto regulatório presente no PL, diferentemente do que foi proposto pelo poder executivo federal durante a tramitação do PL, o citado texto final sugerido pelo deputado Orlando Silva suprimiu a criação de uma agência reguladora, cuja atribuição seria atuar em casos de risco a direitos fundamentais ou de descumprimento da lei pelas plataformas digitais. Entretanto, a supressão do órgão fiscalizador não significa que a ideia foi esquecida pelo governo, parlamentares ou pelo mercado. Muito pelo contrário, nas últimas semanas desdobraram-se interessantes debates acadêmicos, jornalísticos e políticos sobre o tema, os quais resultaram em artigos, ofícios e protocolos de vários setores da sociedade sugerindo diversas estruturas para a criação e implementação deste novo órgão ou agência reguladora. 
Dentre as principais sugestões, a que tem gerado mais debates é a alocação das competências do referido órgão para a estrutura já existente da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), de modo a se absorver a regulação de plataformas digitais pela estrutura técnica de um órgão regulador já existente e evitar as implicações orçamentárias relacionadas à criação de uma nova agência.

Os defensores desta proposta sustentam, em suma, que a ANATEL deveria ser a escolha mais natural do legislador, uma vez que já possui dotação orçamentária própria, bem como expertise e corpo técnico reconhecidos na área de comunicações.

Em relação ao primeiro ponto, argumenta-se que, para a atuação como órgão regulador de plataformas digitais, a ANATEL requereria apenas a contratação de novos servidores específicos para o desempenho de tal função. Segundo a própria ANATEL [1], as novas funções seriam desempenhadas pela Superintendência de Serviços e Direitos Digitais, a qual seria adicionada às oito superintendências já existentes. Deste modo, esta alternativa se mostraria economicamente mais eficiente em relação à criação de uma agência federal completamente nova.

Em relação à expertise da ANATEL em assuntos regulatórios, argumenta-se que a agência, em seus quase 30 anos de existência, já provou sua capacidade de atuação como agência de regulação responsiva, tendo instaurado mais de cem mil processos. Assim, dado o histórico regulador e sancionador da ANATEL, diminuir-se-iam os riscos de decisões atécnicas ou errôneas em relação ao enforcement do PL, quando e se este entrar em vigor.

Entretanto, a defesa da ANATEL como órgão natural de aplicação e fiscalização do PL não é unânime e tem sido confrontada com sugestões de utilização de outros órgãos já existentes, como a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), ou, ainda, com a criação de uma agência nova e específica para o tema. 

Neste sentido, a Comissão Especial de Direito Digital do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil sugeriu a criação do Sistema Brasileiro de Regulação de Plataformas Digitais (SBRPD), o qual se dividiria em três partes, a saber:
(i) Conselho de Políticas Digitais (CPD), órgão decisório encarregado de monitorar e implementar as diretrizes legalmente definidas e obrigações regulatórias das plataformas digitais, e que seria formado por membros nomeados pelos três poderes, além de indicações da ANATEL, CADE, ANPD e OAB Federal;
(ii) CGI.br, responsável por fomentar discussões sobre o assunto no Brasil através de estudos, recomendações e diretrizes; e
(iii) entidade de autorregulação privada encarregada de tomar decisões sobre casos específicos de moderação de conteúdo nas plataformas digitais.

Do ponto de vista regulatório e sancionador, tanto a escolha de uma agência já existente (como a ANATEL ou a ANPD), quanto a criação de uma nova agência mostram-se alinhadas com às diretrizes do Digital Services Act, lei de regulação de serviços digitais atualmente em vigor na União Europeia, a qual figura, por ora, como o melhor espelho e comparativo para o Brasil em termos de regulação de plataformas e serviços digitais e combate à desinformação. Segundo tais diretrizes, as agências responsáveis pela regulação de serviços digitais nos estados-membro da União Europeia devem atender, no mínimo, aos seguintes requisitos:
(i) desempenhar suas funções de forma imparcial, transparente e hábil;
(ii) dispor de recursos técnicos, financeiros e humanos suficientes para a supervisão adequada de seus agentes regulados; e
(iii) agir com total independência, sempre permanecendo livres de qualquer influência externa, seja direta ou indireta, sem buscar nem aceitar instruções de qualquer outra autoridade pública ou qualquer entidade privada. 

A título exemplificativo e comparativo, o Digital Services Act exige que os países membros da União Europeia indiquem seus Coordenadores de Serviços Digitais (DSC) até 17 de fevereiro de 2024, motivo pelo qual vários países ainda estão em processo de escolha. Por ora, a Irlanda, optou pela criação de um novo órgão, o Coimisiún na Meán (Comissão de Mídia), enquanto a França tem preparado um projeto de lei que indica a Autorité de Régulation de la Communication Audiovisuelle et Numérique (Autoridade Reguladora de Comunicação Audiovisual e Digital), sua nova agência de serviços digitais, criada em 1 de janeiro em 2022; a Itália tem cogitado indicar a Autorità per le Garanzie nelle Comunicazioni (Autoridade de Garantia das Comunicações) e, em relação à Alemanha, é provável que o governo opte pela ampliação da competência de algum órgão existente, tendo sido considerada para tanto a Bundesnetzagentur (Agência Federal de Redes), criada em 1998. 

Do ponto de vista econômico, de fato, a criação de um Sistema Brasileiro de Regulação de Plataformas Digitais poderia demandar gastos iniciais maiores do que a simples incorporação de novas funções à estrutura já existente da ANATEL, da ANPD ou de qualquer outra agência reguladora federal. Por outro lado, é sabido que nenhuma das duas agências possuem atualmente servidores suficientes para o desempenho das funções de órgão regulador de serviços digitais. A própria ANATEL afirmou recentemente [2] que necessitaria da recomposição de seu quadro de servidores (que hoje se encontra com déficit de 402 funcionários) para desempenho de tais funções. Ainda, com restrições de recursos humanos similares, a ANPD iniciou suas atividades sem quadro de servidores próprios, sendo seu corpo técnico composto majoritariamente por servidores requisitados a outros órgãos federais. Assim, tanto a criação de um novo órgão, quanto o aproveitamento de órgãos federais já existentes demandaria invariavelmente a contratação de novos servidores e criação de novas estruturas, sejam elas superintendências, órgãos ou agências de maior ou menor porte.

Ainda, independentemente da agência que será escolhida ou criada para desempenho das funções de regulação e sanção previstas no PL 2630/2020 e garantidos os recursos técnicos, financeiros e humanos adequados, é importante frisar novamente que, em qualquer hipótese, tal agência deve sempre permanecer livre de qualquer influência política e econômica externa, seja direta ou indireta, e não deve ser subordinada a nenhuma autoridade pública nem sequestrada por interesses privados, satisfazendo, portanto, cada um dos requisitos mínimos estabelecidos pelo Digital Services Act europeu, os quais recomendamos que também sejam refletidos no PL e, consequentemente, na lei que deverá regular os serviços e plataformas digitais no Brasil. 

Portanto, ainda que o relatório final do PL 2630/2020 tenha suprimido a criação de um órgão regulador de aplicação e fiscalização da lei, é fato que a discussão sobre o tema não se esgotou em tal relatório e continuará sendo um tópico relevante até que o PL seja votado, com sua redação atual ou outra substitutiva. Assim, a existência de uma agência autônoma e independente (em seus aspectos políticos, técnicos e orçamentários) torna-se imprescindível para a consecução e efetividade das diretrizes previstas no PL 2630/2020 e para a restauração de um ecossistema digital brasileiro saudável e socialmente virtuoso.

Matheus Facio
Cesar R. Carvalho
Beatriz Lindoso

[1] FREIRE, Alexandre; CAMPOS, Ricardo. A ANATEL Como Ente Regulador de Serviços Digitais. Disponível em https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/conselheiro-alexandre-freire-e-professor-da-universidade-de-frankfurt-alemanha-ricardo-campos-escrevem-artigo-sobre-pl-2630-2020 
[2] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/05/anatel-faz-lobby-para-regular-big-techs-e-cogita-criar-estrutura-contra-fake-news.shtml